por Leonardo Baes Lino de Souza
Publicado na Revista de Licitações e Contratos - Licicon - Abril 2015 - Ano VIII - Edição 88.
Como corolário do Princípio da Supremacia do Interesse
Público, nossa legislação prevê a possibilidade da existência de cláusulas
exorbitantes nos contratos administrativos. Tais cláusulas são prerrogativas da
Administração que normalmente não são encontradas ou seriam abusivas nos
contratos entre os particulares. Dessa forma, a possibilidade de aplicação de
sanções aos que mantêm contratos administrativos com o Estado é uma das
modalidades de cláusulas exorbitantes[1]. Nesse contexto, Di Pietro
assim define tais cláusulas:
São cláusulas exorbitantes aquelas que não seriam comuns
ou que seriam ilícitas em contrato celebrado entre particulares, por conferirem
prerrogativas a uma das partes (Administração) em relação à outra; elas colocam
a Administração em posição de supremacia sobre o contratado[2].
Assim, ocorrendo a inexecução total ou parcial do contrato, a
Administração Pública, garantida a prévia defesa, passa a ter a prerrogativa de
aplicar ao contratado as sanções de advertência, multa, suspensão temporária ou
declaração de inidoneidade.
Dentre essas sanções, a extensão dos efeitos da suspensão
temporária de participar de licitação e impedimento de contratar com a
Administração tem gerado divergências tanto na doutrina especializada como na
jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça – STJ e do Tribunal de Contas da
União – TCU.
Em apertada síntese, o STJ tem se posicionado pela
interpretação ampliativa do inciso III do art. 87 da Lei 8.666/93, afirmando
que os efeitos da suspensão temporária alcançam os demais órgãos da
administração pública, senão vejamos:
Não há como o município, órgão da Administração Pública,
aceitar a participação em licitação da empresa suspensa temporariamente por
órgão fundacional estadual[3].
Em sentido contrário, o TCU, em regra, adota interpretação
restritiva dos efeitos dessa sanção administrativa, entendendo que tem
abrangência restrita ao órgão ou pessoa estatal que aplicar a sanção.
A controvérsia destes autos diz respeito ao alcance da
sanção de suspensão temporária (inciso III do art. 87 da Lei 8.666/93) e à
possibilidade de editais proibirem a participação, em licitações, de sociedades
cujos diretores, sócios e dirigentes façam parte do ato constitutivo de pessoas
jurídicas suspensas ou declaradas inidôneas para contratar com a Administração.
(...)
Esta Corte, em consonância com grande parte da doutrina,
vem considerando que a "suspensão temporária para participação em
licitação e impedimento para contratar com a Administração", prevista no
inciso III do art. 87 da Lei 8.666/93, tem abrangência restrita ao órgão ou
pessoa estatal que aplicar a sanção[4].
Assim, a controvérsia jurídica que se pretende analisar
neste trabalho restringe-se à repercussão, nas diferentes esferas de governo,
da emissão de declaração de suspensão temporária de participar de licitação e
impedimento de contratar com a Administração, prevista no inciso III do art. 87
da Lei 8.666/93. Em outras palavras, busca-se responder à seguinte questão: uma
empresa sancionada com fundamento no art. 87, III da Lei de Licitações e Contratos
pode participar de uma licitação em órgão público diverso do que aplicou a
sanção?
2. O que dispõe a Lei de Licitações e Contratos
Inicialmente, é importante lembrar que a aplicação de
sanções administrativas deve observar o Princípio da Estrita Legalidade, ou
seja, a autoridade administrativa tem a obrigação de levar em consideração os
limites legais de aplicação, não podendo, por exemplo, aplicar uma penalidade
não prevista expressamente em lei.
Além disso, o administrador público não tem a faculdade de
aplicar ou não a sanção. Ocorrendo o fato ensejador de punição, ele tem o dever
de fazê-lo. Por outro lado, pode-se dizer que há situações em que existe certa
discricionariedade no aspecto quantitativo da pena. Todavia, essa
discricionariedade não deve ser confundida com arbitrariedade, pois deve ser
exercida de acordo com os Princípios da Razoabilidade e da Proporcionalidade. Do
contrário, o contratado deverá contra elas se insurgir, como nos ensina
Zanotello:
A aplicação dessas sanções, além de devidamente motivada,
deverá ser pautada pelos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade,
efetuando-se a justa compatibilização entre a situação fática no caso concreto
e a penalidade a ser aplicada. Sanções desarrazoadas ou desproporcionais
deverão ser objeto de questionamento por parte do contratado[5].
Logo, se a legalidade estrita impõe limites à autoridade
pública definindo quais as sanções passíveis de aplicação e quando penalizar, a
proporcionalidade dá conformidade ao quantum
de pena a ser utilizado.
Isso posto, para o escopo principal deste trabalho, tem-se
por necessário analisar o disposto no art. 87 da Lei nº 8.666/93.
Art. 87. Pela inexecução total ou parcial
do contrato a Administração poderá, garantida a prévia defesa, aplicar ao
contratado as seguintes sanções: (...)
III - suspensão temporária de participação em
licitação e impedimento de contratar com a Administração, por prazo não
superior a 2 (dois) anos;
IV - declaração de inidoneidade para licitar ou
contratar com a Administração Pública enquanto perdurarem os motivos
determinantes da punição ou até que seja promovida a reabilitação perante a
própria autoridade que aplicou a penalidade, que será concedida sempre que o
contratado ressarcir a Administração pelos prejuízos resultantes e após
decorrido o prazo da sanção aplicada com base no inciso anterior.
Da leitura desse dispositivo legal infere-se que o
legislador adotou terminologia distinta nos incisos III e IV, pois na suspensão
temporária de participar de licitação ou contratar com o Poder Público utilizou
o termo “Administração” e na declaração de inidoneidade lançou mão da expressão
“Administração Pública”.
Tal distinção ganha interessante relevância quando interpretada
em conjunto com o contido no art. 6º da mesma Lei Geral de Licitações:
Art. 6º Para os fins desta Lei,
considera-se: (...)
XI - Administração Pública - a
administração direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e
dos Municípios, abrangendo inclusive as entidades com personalidade jurídica de
direito privado sob controle do poder público e das fundações por ele
instituídas ou mantidas;
XII - Administração - órgão, entidade
ou unidade administrativa pela qual a Administração Pública opera e atua
concretamente;
Esses dois termos – Administração
e Administração Pública – são
utilizados no linguajar coloquial e até mesmo em livros técnicos (como este)
como sinônimos. Isso, sem dúvida, contribui decisivamente para que muitos não
se apercebam da diferença entre eles. Sem embargo, para a sistemática da Lei nº
8.666/93, Administração e Administração Pública são expressões
bastante diferentes, conforme se depreende dos incisos XI e XII do seu art. 6º.
(...)
É de clareza solar que a expressão Administração Pública refere-se ao conjunto de todos os órgãos e
entidades que integram o aparato administrativo do Estado. Já o vocábulo Administração diz respeito somente ao
órgão ou entidade pelo qual a Administração Pública opera, isto é, aquele que
realiza a licitação, que firma o contrato. (com destaques no original)
Do acima exposto, depreende-se que a “Administração” está
contida na “Administração Pública”, para fins da Lei 8.666/93, mas o inverso
não é verdadeiro. Ou seja, pela interpretação literal do dispositivo legal, os
efeitos da suspensão temporária teriam como limite a jurisdição administrativa
do órgão sancionador e, por sua vez, a declaração de inidoneidade alcançaria
toda a administração pública direta e indireta, independentemente de quem
sancionou o contratado.
Todavia, como se verá a seguir, o STJ e o TCU divergem
quanto à interpretação dessas expressões, acarretando insegurança jurídica
tanto para a Administração Pública quanto para os que têm interesse em
contratar com o poder público.
3. A sanção de suspensão temporária na ótica do Superior
Tribunal de Justiça
O Superior Tribunal de Justiça tem entendimento consolidado
no sentido de não diferenciar “Administração” de “Administração Pública” e, por
consequência, estende os efeitos da sanção de suspensão de licitar e contratar
com a Administração a qualquer órgão da Administração Pública. Nesse sentido,
transcrevemos a seguinte ementa[7]:
ADMINISTRATIVO – MANDADO DE SEGURANÇA – LICITAÇÃO –
SUSPENSÃO TEMPORÁRIA – DISTINÇÃO ENTRE ADMINISTRAÇÃO E ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA - INEXISTÊNCIA
– IMPOSSIBILIDADE DE PARTICIPAÇÃO DE LICITAÇÃO PÚBLICA – LEGALIDADE – LEI
8.666/93, ART. 87, INC. III.
- É irrelevante a distinção entre os termos Administração
Pública e Administração, por isso que ambas as figuras (suspensão temporária de
participar em licitação (inc. III) e declaração de inidoneidade (inc. IV) acarretam
ao licitante a não-participação em licitações e contratações futuras.
- A Administração Pública é una, sendo descentralizadas
as suas funções, para melhor atender ao bem comum.
- A limitação dos efeitos da “suspensão de participação
de licitação” não pode ficar restrita a um órgão do poder público, pois os
efeitos do desvio de conduta que inabilita o sujeito para contratar com a
Administração se estendem a qualquer órgão da Administração Pública.
O STJ e a doutrina[8] minoritária que se filia a
esta corrente argumentam que se um contratado é punido por um ente federativo e
tal sanção não é extensível aos demais entes da federação, ele poderia
contratar com outros órgãos públicos, o que pode acarretar riscos para as
demais entidades federativas e redundaria em ineficácia da sanção, como se vê
neste julgado:
ADMINISTRATIVO. SUSPENSÃO DE PARTICIPAÇÃO EM LICITAÇÕES.
MANDADO DE SEGURANÇA. ENTES OU ÓRGÃOS DIVERSOS. EXTENSÃO DA PUNIÇÃO PARA TODA A
ADMINISTRAÇÃO.
1. A punição prevista no inciso III do artigo 87 da Lei
nº 8.666/93 não produz efeitos somente em relação ao órgão ou ente federado que
determinou a punição, mas a toda a Administração Pública, pois, caso contrário,
permitir-se-ia que empresa suspensa contratasse novamente durante o período de
suspensão, tirando desta a eficácia necessária[9].
(...) Se o agente apresenta desvios de conduta que o
inabilitam para contratar com um determinado sujeito administrativo, os efeitos
dessa ilicitude teriam de se estender a toda a Administração Pública. Assim se
passa porque a prática do ato reprovável, que fundamentou a imposição da sanção
de suspensão do direito de licitar e contratar, evidencia que o infrator não é
merecedor de confiança.
Além disso, sustentam[11], resumidamente, que
“administração” e “administração pública” são sinônimos; que a Administração
Pública é una, sendo apenas descentralizado o exercício de suas funções; que a
exegese adequada do preceito perpassa pela intelecção dos princípios
fundamentais da Administração Pública, destacando-se o princípio da moralidade;
que as sanções previstas no art. 87 da Lei 8.666/93 buscam impelir o particular
a executar o contrato administrativo; e, por fim, que a Administração Pública
tem o dever incontornável de agir para evitar dano injusto em razão do
princípio da prevenção.
4. A sanção de suspensão temporária na ótica do Tribunal de
Contas da União
A jurisprudência do TCU tem apresentado oscilações sobre a
extensão dos efeitos da sanção do art. 87, III. Até 2010, verifica-se que a
Corte de Contas adotava o entendimento que essa penalidade ficaria restrita ao
próprio órgão que a aplicou[12].
Em 2011, a 1ª Câmara entendeu que os efeitos da suspensão
temporária alcançavam todos os órgãos e entidades de qualquer ente da
federação, adotando entendimento semelhante ao do Superior Tribunal de Justiça[13]. Ilustrando o
entendimento desse órgão fracionário da Corte de Contas, transcreve-se trecho
do Acórdão 3.757/2011 – 1ª Câmara:
Quanto ao ponto que discute o alcance dos efeitos da
penalidade de suspensão do direito de licitar e contratar com a administração
pública, trago ao conhecimento do responsável que, posteriormente à instrução
da Secex/AC, foi proferido o Acórdão nº 2218/2011 - TCU - 1ª Câmara, de
12.4.2011, no qual esta Corte reviu seu posicionamento sobre o alcance dessa
penalidade, ante o nobre propósito de dar proteção à Administração Pública e ao
interesse público, e considerando decisões do Superior Tribunal de Justiça. O
novo entendimento dado à questão foi "de que a vedação à participação em
licitações e à contratação de particular incurso na sanção prevista no inciso
III do art. 87 da Lei 8.666/1993 estende-se a toda a Administração direta e
indireta”.
Já em 2012, o Tribunal de Contas parece ter sedimentado seu
entendimento pela restrição dos efeitos dessa penalidade ao órgão ou entidade
sancionadora, como se constata no voto do Relator no Acórdão 3.439/2012 –
Plenário, no qual foi rejeitado o pedido de instauração de incidente de
uniformização jurisprudencial:
No que se refere à sugestão da representante do
Ministério Público de suscitar incidente de uniformização de jurisprudência, na
forma do art. 91 do Regimento Interno, entendo não ser o caso, visto que as
deliberações do Plenário são praticamente uniformes no sentido de que "a
suspensão do direito de licitar abrange apenas o órgão ou a entidade
contratante que aplicou a penalidade, conferindo, portanto, interpretação
restritiva aos ditames legais previstos na Lei de Licitações e Contratos (v. g.
Decisão n.º 352/1998-Plenário, sessão de 10/6/1998; Decisão n.º 36/2001-Plenário,
sessão de 7/2/2001; Acórdão n.º 296/2003-Plenário, in Ata n.º 11".
Ora, com as devidas vênias por discordar do entendimento
da Unidade Técnica às fls. 6/7 da peça n.º 26, e na mesma linha deste último
posicionamento, não nos parece medida de justiça rescindir o contrato
prorrogado com base no entendimento jurisprudencial do STJ e em um julgado da
1.ª Câmara do TCU, que segue a orientação daquele Tribunal Superior, bem como
na posição doutrinária minoritária de Marçal Justen Filho e Juarez Freitas. Em
que pesem os argumentos coerentes em favor da defesa e do resguardo do
interesse público, é forçoso admitir que o legislador ordinário não distinguiu os termos
Administração e Administração Pública no art. 6.º, do Estatuto de Licitações e
Contratos, sem um objetivo bem definido (na lei não há palavras inúteis). Não
se pode atribuir ao acaso tal esforço, pois se fosse despicienda essa
distinção, bastaria conceituar o termo mais abrangente.
Em verdade, verifica-se que as sanções administrativas,
previstas no art. 87 do Estatuto de Licitações e Contratos, foram cominadas de
forma a obedecer certa gradação, permitindo assim à autoridade competente
proceder à dosimetria da pena de acordo com a gravidade da falta praticada pela
contratada. Portanto, não se pode confundir a sanção de suspensão com a de declaração
de inidoneidade para licitar, sob pena de se punir desproporcionalmente aqueles
que não deram causa para tanto. Fazer tábula rasa dessa distinção significa
tornar inócua a sanção de declaração de inidoneidade para licitar, que restaria
diferenciada apenas quanto ao quantum da pena. (...)
Além disso, se no § 3º do referido dispositivo o
legislador destacou procedimento especial e rito diferenciado para a declaração
de inidoneidade, manifestamente mais rigoroso e com maior amplitude de defesa,
fica claro que o fez por se tratar de sanção evidentemente mais gravosa.
No conceito hermenêutico da inexistência de letra morta
na lei, a mera interpretação literal seria suficiente. Em análise holística da
legislação, a única interpretação sustentável é a de que a diferença entre as
penalidades vai além da duração de cada uma, abrangendo também a esfera
administrativa de poder: a Administração ou a Administração Pública.
Mais recentemente, no ano de 2013, o Tribunal de Contas da
União reiterou que a sanção de suspensão temporária alcança apenas o órgão ou
entidade que a aplicou[14].
Coerentemente com esse entendimento, afirmou que não
permitir que empresas suspensas por órgãos estaduais ou municipais participem
de licitações promovidas pela união não está em consonância com a legislação de
regência e restringe a competitividade.
Dentro dessa linha, recomendou que, ao prever a sanção de
suspensão temporária nos editais de licitação, se faça constar expressamente o
nome do órgão público que a promove, ao invés de “Administração”, com intuito
de dar interpretação adequada ao dispositivo legal, bem como informar ao
licitante o alcance da sanção constante do inciso III do art. 87.
Além disso, ainda em 2013, o Plenário do TCU reiterou
expressamente que pacificou a sua jurisprudência de que a sanção de suspensão
temporária da Lei 8.666/93 tem aplicação restrita ao órgão que a aplicou. Por
sua relevância, transcreve-se a ementa do Acórdão 1017/2013-Plenário:
A sanção prevista no art. 87, inciso III, da Lei
8.666/1993 (suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de
contratar com a Administração) tem aplicação restrita ao órgão ou entidade que
a cominou.
Agravo interposto pela Empresa Brasileira de
Infraestrutura Aeroportuária (Infraero) contra decisão cautelar que determinara
a correção do edital do Pregão Eletrônico 122/ADCO/SRCO/2012 de modo a
ajustá-lo ao disposto no art. 87, inciso III, da Lei 8.666/1993, ou seja, para
que a penalidade ali prevista alcance apenas as empresas suspensas por aquela
estatal, consoante o entendimento do Acórdão 3.243/2012-Plenário. Argumentou a
recorrente que: (i) a jurisprudência do TCU não estaria pacificada nos termos
da citada decisão; (ii) diante da dúvida objetiva, seria tecnicamente impróprio
falar-se em fummus boni iuris; (iii) a aplicação retroativa do novel
entendimento atentaria contra o princípio da segurança jurídica consubstanciado
no art. 2º, caput, da Lei 9.784/1999. O relator refutou todos os
argumentos, esclarecendo que “o Tribunal pacificou a sua jurisprudência em
considerar que a sanção prevista no art. 87, inciso III, da Lei 8.666/1993, que
impõe a ‘suspensão temporária para participar em licitação e impedimento para
contratar com a Administração, por prazo não superior a 2 (dois) anos’, tem
aplicação restrita ao órgão ou entidade que a aplicou” e
restabeleceu “o entendimento já consolidado na sua jurisprudência, no
sentido de fazer a distinção nítida entre as sanções previstas nos aludidos
incisos III e IV do art. 87 da Lei 8.666/1993, conforme Acórdão 3.243/2012 –
TCU – Plenário”. Quanto à suposta aplicação retroativa, o relator
contra-argumentou que, além de o acórdão em questão não ter criado novo
entendimento, mas restabelecido a jurisprudência antes consolidada, “a
Infraero teve oportunidade de corrigir o instrumento convocatório logo após
tomar conhecimento da edição da mencionada deliberação e, também, ao receber a
impugnação apresentada... , o que, entretanto, preferiu não fazer, mesmo após
ter sido comunicada da Cautelar concedida no mesmo sentido pelo
Tribunal”. “Em segundo lugar, as jurisprudências deste Tribunal e do
Supremo Tribunal Federal são firmes no sentido de que o disposto na Lei
9.784/1999 não se aplica aos processos de controle externo apreciados por esta
Corte de Contas.” O Plenário acompanhou o relator e negou provimento ao
Agravo.
Ademais, cumpre ressaltar que a doutrina majoritária trilha
o mesmo caminho, como esclarece Di Pietro:
Os incisos III e IV do artigo 87 adotam terminologia
diversa ao se referirem à Administração Pública, o que permite inferir que é
diferente o alcance das duas penalidades. O inciso III, ao prever a pena de
suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar
com a Administração, por prazo não superior a 2 (dois) anos, refere-se à Administração, remetendo o intérprete
ao conceito contido no artigo 6º, XII, da Lei, que define como “órgão, entidade
ou unidade administrativa pela qual a Administração Pública opera e atua
concretamente”. O inciso IV do artigo 87, ao falar da inidoneidade para licitar
ou contratar com a Administração Pública,
parece estar querendo dar maior amplitude a essa penalidade, já que remete o
intérprete, automaticamente ao artigo 6º, XI, que define Administração Pública
de forma a abranger “a administração direta e indireta da União, dos Estados,
do Distrito Federal e dos Municípios, abrangendo inclusive as entidades com
personalidade de direito privado sob o controle do poder público e das
fundações por ele instituídas ou mantidas”[15].
(grifos no original)
Para Pereira Junior[16], há notória distinção
entre as sanções cominadas no art. 87 do Estatuto de Licitações e Contratos a
evidenciar gradação das penalidades a serem impostas de acordo com a gravidade
das infrações administrativas praticadas. Acrescenta ainda que o art. 97 da
mesma lei considera crime admitir à licitação ou celebrar contrato com empresa
ou profissional inidôneo, não existindo tipificação equivalente em relação à
empresa ou profissional suspenso. Para ele, a razão é clara e se funda no fato
de a norma penal, por ser nacional, projetar seu alcance em todo o território
brasileiro, em qualquer esfera da Federação. Assim, o fato de a suspensão
constituir sanção local afasta a sua configuração penal.
Por fim, em 2014, a Corte de Contas prolatou interessante
acórdão excepcionando a interpretação consolidada sobre o alcance da penalidade
de suspensão prevista no art. 87, III.
Analisando o caso concreto, o Tribunal não anulou
procedimento licitatório no qual uma empresa foi impedida de participar, por
força de interpretação errônea do alcance da sanção de suspensão temporária.
Adotou como fundamentos dessa decisão a observância do Princípio da Supremacia
do Interesse Público, a baixa materialidade do objeto, a não restrição à
competitividade e o fato de não haver indício de conluio entre licitantes e
gestores. Pela importância, transcreve-se o seguinte trecho do Acórdão
1457/2014-Plenário:
Representação de licitante relativa a pregão presencial
promovido pelo Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo – Cremesp,
tendo por objeto a contratação de empresa especializada em serviços de
vigilância desarmada e segurança patrimonial, apontara a utilização irregular
da suspensão para licitar prevista no art. 87, inciso III, da Lei 8.666/1993. O
Cremesp, em sede de oitiva, reconheceu que “o item 4.1.3 do instrumento
convocatório do certame em tela vedou a participação de empresa que houvesse
recebido, de qualquer órgão ou entidade da Administração Federal, a penalidade
de suspensão prevista no inc. III do art. 87 da Lei 8.666/1993, situação que
contrariaria o disposto naquele dispositivo, de acordo com o entendimento
prevalente no âmbito deste Tribunal (...), no sentido de que referida
sanção produziria efeito apenas em relação ao órgão ou entidade contratante que
a aplicou”. Ao analisar pedido de suspensão cautelar do certame ou da execução
do contrato firmado, o relator mencionou que a medida acautelatória a ser adotada
pelo Tribunal tem como embasamento o fundado receio de grave lesão ao erário ou
ao interesse público, situação que não pode ser confundida com a defesa de
interesses particulares eventualmente contrariados pelo ato administrativo
questionado. No caso concreto, o relator se convenceu de que houve ampla
participação no pregão, intensa disputa de lances e indícios de efetiva
economia aos cofres públicos diante do valor arrematado. Assim, consignou que
“ainda que se possa vir a argumentar que a representante foi prejudicada pela
interpretação extensiva aplicada pelo Cremesp ao disposto no inc. III do art.
87 da Lei 8.666/1993, ao ser impedida indevidamente de participar do Pregão
Presencial 90/2013, não há indicativos de que a falha de procedimento haja conduzido
à restrição da competitividade do certame”. Nesse passo, em linha com
precedentes do TCU, concluiu o condutor do processo não estar configurada a
hipótese de anulação do procedimento licitatório ou do contrato firmado,
“tendo em vista, além do que já se observou a respeito da ausência de restrição
à competitividade do certame, a não identificação de indícios de conluio entre
as licitantes e os gestores das unidades jurisdicionadas, bem como do risco
reduzido de a falha em questão acarretar lesão significativa ao Erário, em face
da baixa materialidade do objeto”. O Plenário, à vista dos argumentos do
relator, considerou parcialmente procedente a representação e indeferiu o
pedido de cautelar formulado pela representante.
5. Conclusão
Portanto, ao nosso sentir, a doutrina majoritária e a Corte
de Contas da União parecem estar com a razão, pois a Lei de Licitações e
Contratos conceituou de forma diversa os termos “Administração” e
“Administração Pública” e, de acordo com as lições de hermenêutica, a lei não
tem palavras inúteis. Acrescente-se ainda que se o âmbito de alcance das
sanções existentes nos incisos III e IV do art. 87 fosse o mesmo (restrito ao
órgão ou entidade que a aplicou), elas seriam idênticas, o que contraria a
regra de hermenêutica segundo a qual devem ser afastadas as interpretações
desarrazoadas.
Além disso, ao analisar o art. 87 da Lei 8.666/93, fica
evidente que as sanções elencadas obedecem a uma gradação, permitindo ao
administrador público realizar a dosimetria da pena de acordo com a gravidade
do fato. Tal gradação dá conformidade ao Princípio da Proporcionalidade,
incidente nas sanções administrativas por expressa determinação legal[17].
Também corroborando a correção do entendimento do Tribunal
de Contas da União, vê-se que o §3º do art. 87 prevê procedimento especial e
mais rigoroso para a declaração de inidoneidade, franqueando maior amplitude de
defesa ao contratado, deixando evidente se tratar de sanção administrativa mais
gravosa do que a de suspensão temporária.
Não bastasse isso, toda norma que impõe restrição de
direitos deve ser interpretada de forma restritiva. Dessa feita, a
interpretação tecnicamente correta é a de que as penalidades de suspensão
temporária e de declaração de inidoneidade são diversas não só em relação à
duração de cada uma, mas também em razão da gravidade do fato ensejador da
sanção e do alcance dos efeitos de cada uma.
Por todo o exposto, não cabe ao intérprete inovar quando a
mera interpretação literal é suficiente, sendo que, “para os fins”[18]
da Lei de Licitações e Contratos, “Administração” e “Administração Pública” são
expressões diversas, fazendo com que os efeitos da penalidade de suspensão de
licitar e impedimento de contratar com o poder público sejam restritos ao órgão
ou ente público que a aplicou.
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Sanções administrativas – Suspensão do direito
de licitar e contratar – Efeitos – Extensão – Entendimento do TCU. Revista Zênite – Informativo de Licitações
e Contratos (ILC), Curitiba: Zênite, n. 229, p. 286. mar. 2013, seção
Perguntas e Respostas.
·
TOLOSA FILHO, Benedicto de. Sanções
administrativas – Alcance, devido processo legal e dosimetria – Retenção
indevida de pagamento. Revista Zênite –
Informativo de Licitações e Contratos (ILC), Curitiba: Zênite, n. 224, p.
1005-1009, out. 2012.
·
TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. Licitações e contratos: orientações e
jurisprudência do TCU. 4. ed. Brasília: TCU, Secretaria-Geral da Presidência:
Senado Federal, Secretaria Especial de Editoração e Publicações, 2010.
·
ZANOTELLO, Simone. Recursos Administrativos. Curitiba: Editora Negócios Públicos,
2008.
Síntese
curricular
Autor:
Leonardo Baes Lino de Souza - Celular: 51 - 81706034
Chefe da
Assessoria Jurídica da Diretoria Regional da Procuradoria Regional do Trabalho
da 4ª Região. Pós-graduando em Direito Público pela Escola Superior da
Magistratura Federal do Rio Grande do Sul - Esmafe/RS.
[1]
Tem-se como outras cláusulas exorbitantes: exigência de garantias; alteração
unilateral; rescisão unilateral; fiscalização; retomada do objeto; restrições
ao uso da exceptio non adimpleti
contractus.
[2]
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 26ª ed. São Paulo:
Atlas, 2013, p. 277.
[3]
STJ, REsp. 151.567-RJ, Rel. Min. Peçanha Martins, julgado em 25/2/2003.
Disponível em: <www.stj.jus.br>.
[4]
TCU, Acórdão nº 3.243/2012, Plenário, Rel. Min. Ubiratan Aguiar. Disponível em:
<www.tcu.gov.br>.
[5]
ZANOTELLO, Simone. Recursos Administrativos. Curitiba: Editora Negócios
Públicos, 2008. p. 46.
[6]
NIEBUHR, Joel de Menezes. Licitação pública e contrato administrativo. 3. ed.
rev. e ampl. – Belo Horizonte: Fórum, 2013, p. 1012.
[7]
STJ, REsp. 151.567/RJ, Rel. Min. Francisco Peçanha Martins, Segunda Turma,
julgado em 25.02.2003, DJ 14.04.2003. Disponível em: <www.stj.jus.br>.
[8]
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 19. ed. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 200-201;
[9]
STJ, REsp 174.274/SP, Rel. Ministro Castro Meira, Segunda Turma, julgado em
19/10/2004, DJ 22/11/2004. Disponível em: <www.stj.jus.br>
[10]
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos
administrativos. 15. ed. São Paulo: Dialética, 2012, pág. 1020.
[11]
Vide relatório do Min. Valmir Campelo no Acórdão 3.439/2012 - Plenário
[12]
TCU, Acórdãos 1539/2010-Plenário e 2617/2010-2ª Câmara. Disponíveis em:
<www.tcu.gov.br>.
[13]
TCU, Acórdãos 917/2011-1ª Câmara e 2218/2011-1ª Câmara. Disponíveis em:
<www.tcu.gov.br>.
[14]
TCU, Acórdãos 842/2013-Plenário e 2556/2013-Plenário. Disponíveis em:
<www.tcu.gov.br>.
[15]
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 26ª ed. São Paulo:
Atlas, 2013, p. 282.
[16]
PEREIRA JUNIOR, Jessé Torres. Comentários à Lei de Licitações e Contratações da
Administração Pública, Rio de Janeiro: Renovar. 7. ed. 2007, p. 886.
[17]
Vide art. 2º, VI da Lei 9.784/99.
[18]
Vide caput do art. 6º da Lei
8.666/93.